A velha estrutura de madeira costumava ranger em agosto. Na verdade, aquele era um péssimo mês para o lar de Fabrício como um todo; as paredes eram mais geladas, o jardim morria e as janelas inibiam o exterior, temporariamente fechadas em uma tentativa de barrar o assombro de ventos e brisas.
Tentativa, uma palavra importante para compreender seu
modus operandi em relação a própria saúde. O fim da infância foi marcado por
uma condenação na cidade em que nasceu, proferida por uma desconhecida cujo
rosto se perdeu entre as tantas outras faces que Fabrício odiara em sua vida. Mas
a memória da praga rogada, ainda que já muito simplificada e resumida, persistia
acesa como uma chama manutenida pelo ódio.
“Tu não passarás de agosto” – dito de forma chorosa,
quase fúnebre, e uma mão que se estendia em direção ao seu rosto, iluminado
pelo sol fraco de agosto. Foi a única vez em que Fabrício sentiu o próprio
coração galopar para fora do peito em disparada, as mãos tremerem e o suor frio
e insonso transbordar da pele.
Após tal acontecimento, Fabrício caiu nos braços da
paranoia. A cada ano, aguardava a chegada da morte em agosto; conservava a
saúde e imunidade a todo custo, e, no possível último mês de vida, poeticamente
dizia com um tom de preocupação esboçado no olhar caído e vazio: “nessa época evito
ficar no sereno, me perder em ventanias ou me banhar no choro dos céus; se a
morte me quiser, que bata à porta”.
Décadas depois, ele respirava e inspirava a exaustão
da velhice nos pulmões deteriorados com centenas de viagens e trabalhos; aos sessenta
e quatro anos, considerava-se uma história completa, com as três partes
narrativas construídas e amarradas em um processo que podia ser comparado com o
custoso processo artesanal dos móveis de Viena.
Já faziam anos desde a última vez em que houve
qualquer preocupação com a chegada de agosto, de tal forma que a praga se
assemelhava a uma memória boba, um susto temporário e infantil. O retorno veio
como uma geada inesperada, trazendo a devastação da lavoura e do campo em um
frio sádico extraviado do pesadelo camponês.
Como em um (sequestro) relâmpago, a tranquilidade foi
destruída em um piscar de olhos; e a página seguinte no calendário transformou o
lar em cativeiro. Um caso grave de insônia deitava na cama todas as noites, e o
frio sazonal congelava a alma. A falecida esposa, as duas filhas distantes, a
solidão; como o antigo amigo teatral costumava dizer, “o elenco estava estonteante”.
Próximo ao fim da primeira semana, Fabrício enviou duas
cartas de urgência para ambas as filhas que moravam em estados na outra ponta
do país.
“O vento de agosto traz pressentimentos indesejáveis,
e o clima revive memórias que me afetam profundamente. Também temo que minha
saúde esteja comprometida pelas reviravoltas sazonais; ontem visitei meu antigo
doutor, e além das constatações médicas e avisos tradicionais aos quais
tradicionalmente ignoro, foi recomendado que uma breve visita de minha herdeira
proporcionaria um grande alivio aos meus nervos, traria ânimo ao meu lar e
tornaria a travessia desse mês mais simples. Por isso, peço que pense nesse
convite com o mais sincero afeto que seu pai possa merecer”.
As cartas foram enviadas individualmente, ainda que
com textos idênticos, em uma sutil jogada no tabuleiro; o veterano sabia que
uma reunião familiar seria rapidamente recusada. A oportunidade de misturar o
tom de urgência com um convite seleto alimentaria o ego de suas filhas na dose
certa, e parecia tão infalível quanto a lista de velhos truques de mágica que
sempre agradam o público. Ainda que um encontro entre as duas no mesmo trem pudesse
adicionar outra tragédia ao sobrenome, era um risco valioso demais para ser
desperdiçado.
A falta de comunicação era um constante convite ao ato
de imaginar desgraças. Acidentes de trem, assaltos, reencontros perigosos; com
o tempo, tudo foi se tornando possível na mente de Fabrício. Entre uma sinapse
e outra, a insegurança dançava com a paranoia e a impaciência seduzia a pressa.
O tempo congelava, os ponteiros desapareciam, o som da mecânica cessava e a
lentidão se confundia com a estática. Os sonhos eram inundados com rostos e
lembranças, e o travesseiro transbordava com uma saudade sincera que maquiava,
ainda que brevemente, todos os atos ruins feitos por aquele homem: o ódio em
seus olhos, o rancor em suas palavras, a mágoa em seu peito. O calejar dos anos
não lhe trouxe sabedoria, apenas a cruel consciência de que seu destino seria,
no pior dos casos, uma viagem solitária pelo rio de dor e fogo descrito
na obra de Dante; ou, pela fé cética, um esquecimento enraizado na terra que
lhe emprestara não somente a vida, mas cada fôlego tomado durante sua corrida
pela sobrevivência.
O trem surgiu no horizonte de uma forma que merecia
ser retratada em uma grande e bela pintura de óleo sob tela; e ser
posteriormente vendida por uma fortuna, para então se tornar a peça-chave na nobre
decoração do quarto de hóspedes de algum oligarca. A fumaça saía como a
clássica troca de ar realizada de forma inconsciente pelo alívio que enchia os
pulmões. O barulho era ignorado, assim como as tantas faces e trajes que saiam
do trem como uma enchente em um deserto. Não demorou muito até que uma das herdeiras
se revelasse entre a multidão. Antes de razão voltar aos trilhos, as duas
filhas se aproximaram de Fabrício como uma sentença inevitável, em passos
lentos, com olhares secos que se buscavam o resquício de humanidade em sua
alma.
Antes que a surpresa pudesse escapar da boca, seus
ombros sentiram o apoio de mãos distantes. O misto de emoções da situação fazia
a realidade alternar constantemente entre sonho e pesadelo, até que o silêncio
foi rompido com uma direção simples: “para casa, sim?”. O trajeto durou um
piscar de olhos, e qualquer noção de tempo parecia ter sido deixada no caminho
até a porta; agosto parecia nunca ter existido, como um erro histórico que não
foi corrigido e agora ocupava um bloco de dias e semanas em uma organização
numérica de tinta e papel.
Não demorou muito até que o cenário roubado de uma
rotina se formasse: Fabrício estava sentado em uma poltrona, e as filhas
tomavam chá perto da janela que dava para o jardim; outrora colorido e vivo,
era a eterna lembrança de uma flor chamada mãe.
– Em minha confessa tolice, acreditei que vocês duas
nunca mais se aproximariam.
– Não o culpo; eu também não acreditava nisso. Mas o
que é o horizonte de eventos da existência humana se não isso, a constante
surpresa daquilo que não acreditávamos?
O encontro no vagão podia ser comparado a uma aguardada
profecia de proporções catastróficas que ocorria em um dia pífio; um risco
desperdiçado, uma tempestade encerrada em chuva. A tensão no ar fazia o vidro
vibrar, a água ferver, e o laço sanguíneo e afetivo se perder nos resquícios de
uma antiga disputa, com suas ofensas e mágoas já enterradas, mas com a
corrosiva mágoa ainda viva. Em pouco tempo, a rixa de olhares ressentidos foi
substituída pela genuína curiosidade. A carta, o pai: as urgências em comum
serviram como pena e papel para uma trégua nunca assinada.
– Temo que o motivo de retornarmos a essa casa não seja
a saudade, mas algo incomum que tem lhe furtado qualquer possibilidade de
descanso; e esse algo é um espaço aberto a qualquer hipótese, um campo
imaginário extremamente fértil ao qual tenho frequentado desde que pus minha
bagagem no interior do trem. Você está doente, sim; mas com o quê?
– Com agosto.
Foi saliva desperdiçada;
a frase não teve o efeito esperado, e a fé das herdeiras na chance de o pai ter
se atrasado para o expresso da lógica e razão aumentava como a esperança em
setembro. Fabrício, em uma silenciosa decepção, sabia que aquele era o preço de
um segredo não revelado para sua descendência. Mesmo pensando em muitas
justificativas, eram meros disfarces da própria culpa. Lembrou da esposa,
outrora vívido amor alastrado no físico, e de seu túmulo, visitado no mês
anterior: ela nunca soube do trauma de infância, da pequena mão que tremia em
pavor, ou dos pés descalços que corriam da maldição. Era um mistério que surgia
uma vez por ano, depois dissipava-se em tantos outros dias ocupados por
certezas que inibiam qualquer graça do suspense. Era reconfortante pensar que
essa história escondida não passava de um mero detalhe ruim na mais linda
pintura pincelada por um ser vivo, como contavam os livros de museologia
renascentista; ainda assim, um detalhe que, em dado momento, seria
inevitavelmente questionado, apontado ou observado. E aquele era o momento.
A memória foi contada de
uma forma estranhamente detalhada, revivida em letras narradas por uma
preocupação enfim solta da gaiola craniana que aprisionava seu voo; em outras
palavras, um alívio que corria pelo piso seco e velho da casa como se estivesse
recuperando o tempo perdido. As herdeiras não levaram a história muito a sério,
em uma troca de papéis que relembrava a época em que o pai ouvia os frutos de
suas imaginações e pagava com um punhado de risos e brincadeiras, perguntas
bobas e descompromissadas. O olhar inundado de Fabrício foi incapaz de fornecer
confiança a seu relato guardado, os dedos trêmulos passaram despercebidos e a alma
arrependida era invisível para o olhar penal de suas descendentes; mesmo com os
detalhes da verdade, a bagagem de coisas antigas e mal resolvidas bastavam para
transformar a história em estória.
– É difícil ter fé em suas palavras.
– Não exijo uma crença cega naquilo que sublinhei com
dor e culpa. Já não é mais um segredo guardado nos confins de minha própria existência,
e para mim, isso basta.
As filhas permaneceram no lar até o último dia do mês,
após muitas conversas, entendimentos e cuidados. Despediram-se do pai em
lágrimas que caíam no chão quente e metálico do trem, evaporando-se como as
muitas mágoas deixadas para trás naquela visita; a bagagem nunca foi tão leve,
e o vagão era sereno como um descanso nos campos verdes que corriam nas
paisagens da janela, pinturas vivas constantemente renovadas e substituídas.
Na véspera de setembro, Fabrício vivia uma
tranquilidade que inibia o som do vento sibilando no exterior. Não se ouvia
barulho, e o conforto do lar era reafirmado com o sonífero acolchoado da cama
que lhe aguardava. Deitou-se e respirou fundo, expirando pelo cômodo todo o
peso de sua vida. Ficou leve como uma pena e saiu voando pela janela, guiado na
serenidade noturna decorada pelas estrelas. Podia riscar as nuvens com a ponta
dos dedos, guardar o luar na palma da mão e observar o trem que cruzava fronteiras
e iluminava a noite com um rastro de faíscas. Também podia ver, ainda que
distante, o descanso das filhas no penúltimo vagão. Conforme o céu acendia, a
serpente metálica desaparecia no horizonte; a distância aumentava a todo vapor,
mas Cecília e Isabel nunca estiveram tão próximas de seu pai, e vice-versa.
Poderia ser sua mais bela lembrança, mas o tripé da existência já havia sido desmontado:
abriu os olhos e viu o despertar da vida humana, a dissolução das barreiras
físicas, o limite do sonho. Substituiu o lar, o teor e a forma: virou uma memória
pulsante, uma saudade viva, um relato, uma experiência... um aguardo.
Incrível! Adorei sua condução de palavras, fiquei mais preso a cada frase. Vejo potencial de um grande escritor.
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