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BOLO DE CHOCOLATE COM GLACÊ

Em alto mar, é possível observar estrelas que alcançam o chão.

Em alto mar, o navio que há muito zarpou navega sem rumo, sem norte, sem sul.

Alguns erroneamente diriam que está perdido, que nunca será encontrado e nunca encontrará nada.

No navio que carrega o nome "Rocca", há pessoas que guardam fotos, latas, amuletos, trapos, discos, cartas, jóias, e qualquer outra peça que possa carregar um valor sentimental; incluindo receitas.

Dizem que passar tanto tempo flutuando num pedaço oco de metal pode gerar saudade, entre outras coisas.

Saudade de gente, de cheiro, de gosto, de toque, e de vista.

Marcos sentia saudade de uma receita muito antiga, escrita num papel já amarelado, um pouco amassado, que olhado um pouco mais de perto, talvez com um olho fechado, também apresente uma tinta desgastada.

Seguindo os passos da receita, para fazer o bolo de chocolate é necessário misturar açúcar com cacau em pó, misturar gemas de ovos e óleo, ao poucos acrescentar a água e o trigo, e em seguida juntar o fermento e por fim juntar as claras em neve, e então despejar tudo numa forma untada e colocar para assar por um tempo que demore, mas não tanto. E para fazer o glacê, basta misturar claras de ovo com açúcar, levar essa mistura ao fogo, então à um descanso em banho-maria, e enfim bater a mistura com vontade até atingir uma firmeza e cremosidade impecável.

Ao ler a receita, lembranças atingem Marcos como luzes disparadas por uma máquina fotográfica antiga. Memórias são como sombras: inseparáveis de nós e exibidas somente perante a luz.

Marcado como uma cicatriz que um dia já foi casca e ferida, Marcos não consegue evitar pensar em algo senão o bolo de chocolate, o glacê, a mordida que não cabe no pensamento, que aguarda ação, a degustação daquilo que lhe rouba a razão.

De vez em quando, pela manhã, é possível observar o nascer do Sol sem impecilhos climáticos. Dizem que o contraste entre o mar gelado e a estrela quente atrai e fascina, e que neste momento os "entocados" que habitam o navio gostam de ir à sua proa.

Marcos não disse, mas é evidente que sua atração em ver o astro rei está no risco; pois naquele que ilumina há também o potencial de cegar.

É um olhar estático que brinca de vaivém, que carrega muitos dilemas e os repete desde que o mundo é mundo.

Profundas são as águas em que Rocca navega, com cardumes se atravessando numa velocidade que impossibilita tudo que não se resuma a milissegundos, algo impossível de ser previsto ou premeditado.

 O capitão do navio avisa que em breve haverá terra à vista, e quando a hora chegar, um eclipse virá.

A descrença na previsão atinge muitos, menos os saudosistas, como Marcos. Ele não esconde a saudade e o desejo que carrega há tempos pela receita. Mesmo se quisesse esconder, falharia. Seu corpo está no navio, mas sua mente habita o sonho de estar na terra; sentado à mesa, com um pano na gola, empunhando uma colher e diante daquilo que mais deseja.

Dias chuvosos e dias ensolarados, dias felizes e dias tristes. Eles começam e acabam, mas ainda não se vê eclipse ou chegada.

O capitão profeta pede paciência, e somente isso. Só o tempo dirá se isso bastará.

Acordando numa manhã ao som de pássaros, Marcos não sabe nome, aparência ou as notas alcançadas pela ave, mas sabe que é barulho de pássaro, mais de um, dezenas, voando sob um possível céu azul. Com um ânimo nunca visto até então, Marcos se dirige com pressa à proa.

Diante dele, o eclipse se concretiza. Num ato involuntário, Marcos encara o brilho solar. A visão real se perde, arde em chamas, e só sobra o imaginário, o irreal, onde tudo é possível. 

Insensível, Marcos nem sente as lágrimas escorrendo em sua face após ouvir o "terra à vista" aveludado do capitão.

O eclipse se despede e devolve a visão à Marcos, e enfim sua vista vê terra.

Sem saber se foi a profecia que se realizou ou foi o óbvio que aconteceu, ele já não está mais no barco. Está distante, sentado à mesa com um pano na gola, empunhando uma colher e diante do bolo de chocolate com glacê.

O sonho vira realidade, o desejo é saciado, mas o bolo vive eternamente;


Na mesa ou na memória.


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